Texto de apresentação da exposição
Loucuras Anunciadas – Francisco Goya
Esta exposição foi curada originalmente por Mariza Bertoli, em 2017 e 2018, nas unidades da Caixa Cultural de São Paulo, Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro. Oito meses após o encerramento da última mostra, ela faleceu aos 77 anos de idade em Curitiba, cidade onde nasceu e na qual foi diretora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (1983-1984).
Conhecemos Mariza em São Paulo, onde tornou-se mestre e doutora em Artes Plásticas pelo Programa de Integração da América Latina da USP. Encontrávamos, inicialmente, nas assembleias gerais da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e, posteriormente, durante as produções de exposições das quais participávamos, juntamente com Cláudia Lopes, coordenadora dessa mostra, Loucuras Anunciadas – Francisco Goya. Mariza foi curadora de uma bela exposição-instalação – Sedução dos Contrários – Festim e Devoração – com obras do artista uruguaio Gustavo Nakle, na Caixa Cultural Rio de Janeiro, com a mesma equipe básica, empreendida por nossa empresa de projetos culturais. Tornamo-nos grandes amigos nos últimos anos de sua vida. Por essas razões, na sua falta, fomos convidados a substituí-la nessa mostra aprovada pelo ProAc em seu Edital nº 10/2022 que contempla a circulação de exposições no Estado de São Paulo.
A curadoria da exposição Loucuras Anunciadas – Francisco Goya foi a última da vida de Mariza Bertoli. Escreveu para o catálogo um texto enxuto, certeiro, escorreito, que deixa entrever sua maturidade crítica e redacional naquele momento de sua vida. O projeto foi valorizado por uma expografia criativa e por atividades interativas desenvolvidas pela Cláudia Lopes. Com tudo isso, mais a qualidade das obras expostas, o resultado não poderia ser outro: a mostra foi um sucesso de público e de crítica.
Agora essa exposição chega ao Centro Cultural Patrícia Galvão, de Santos, com reprodução das mesmas obras criadas por Francisco José de Goya y Lucientes e incluídas na publicação Los Proverbios, de 1864, mais três outras, contextualizadas da mesma forma.
Goya é reconhecido como o mais significativo artista espanhol da segunda metade do século XVIII e primeiro quartel do Século XIX e sua obra é uma das mais vigorosas e originais de todo o mundo no período em que ele viveu. Nascido em Fuendetodos, na Espanha, em 1746, filho de um dourador de obras sacras, faleceu aos 82 anos de idade em Bordéus, na França, para onde se dirigiu no fim da vida à procura de tratamento médico.
Atraído pelo desenho e pela pintura desde cedo, seu noviciado nas artes transcorreu progressivamente, de tal forma que seus primeiros trabalhos de qualidade só apareceriam após os 30 anos de idade. A partir de então, sua estrela sobe e, aos 43 anos, atinge o Olimpo da arte em seu país: é nomeado o pintor da corte de Carlos IV. Três anos depois, é acometido por uma doença que o deixa surdo. O infortúnio impacta fortemente sua visão de mundo e o leva a abandonar, pouco depois, as cenas idílicas, religiosas e de costumes. O pessimismo invade sua arte que toma o caminho do mórbido, do bizarro, do aterrador. Esta nova tendência já se manifesta na primeira série de gravuras que ele realiza, de 1793 a 1798, e lança no ano seguinte, constituída por 80 imagens realizadas com as técnicas da água-forte e água-tinta – Os Caprichos – mediante as quais faz uma crítica mordaz aos costumes da sociedade espanhola de então e aos comportamentos da igreja, numa linguagem que inclui alusões ao demonismo e à bruxaria.
Dez anos após, dividido entre a atitude de aceitação do regime de ocupação da Espanha pela França (1808-1814), decorrente de seu espírito liberal – Goya continua como pintor da corte de José Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão – e o sentimento de repúdio pelas atrocidades cometidas pelos dois contendores, França e Espanha, o leva à produção de outra série de calcogravuras em água-forte, constituída por 82 pranchas, Os Desastres da Guerra. Com esta série, que fica pronta no final do período de ocupação francesa, Goya estigmatiza as atrocidades, a bestialidade e a selvageria dos conflitos bélicos.
Em 1815, recolhe-se à vida privada, passando a trabalhar para si mesmo e pessoas próximas, embora mantendo nominalmente o título de pintor da corte que, na prática, passa a ser exercido por outro artista. (Mais tarde, renunciaria a esse título.) Inicia nessa época a criação de uma série de calcogravuras em água-forte e água-tinta, com interferências, nas chapas de cobre de várias delas, do brunidor, da ponta seca e do buril. Trata-se de uma série de temática complexa, conhecida como Disparates, que se prolonga até 1819 e cujas imagens integram essa exposição. O texto de Mariza Bertoli, incluído no site www.loucurasannciadasgoya.art, apresenta informações e juízos preciosos para melhor compreensão da série. Algumas das últimas gravuras aqui apresentadas foram criadas na Quinta del Sordo (Quinta do Surdo), na casa de campo que Goya adquiriu, em 1819, na periferia de Madri, onde ele criou também, na sequência, até 1823, em tons de preto, marrom e cinza, os murais intensamente dramáticos e mundialmente famosos denominados Pinturas Negras.
Em 1824, o artista deixa a Espanha e se dirige a Bordéus, na região sudoeste da França, para tratamento de saúde. Lá realiza algumas gravuras e se dedica à criação de pinturas de viés pré-impressionista. Goya realizou cerca de 500 pinturas a óleo, aproximadamente 300 gravuras em metal e litogravuras e centenas de desenhos. Trata-se de uma das figuras mais emblemáticas da história da arte, um artista fundamental.
Enock Sacramento
Curador
São Paulo, abril de 2023