Texto de apresentação 2018
Goya nasceu em Saragoza 1746 e morreu em Bordéus 1828
“Loucuras Anunciadas” ou “Disparates” é a mostra que a Caixa Cultural apresenta em Curitiba, São Paulo e Brasília, constituída de um enigmático conjunto de gravuras, que foram as últimas obras gráficas de Francisco de Goya. Datadas entre 1815 e 1820, quando ele passou a fazer para si mesmo, na Quinta do Surdo, as famosas “Pinturas Negras”; estas últimas obras do artista anunciam o seu ingresso na arte contemporânea. Composta inicialmente de uma série de 22 pranchas, realizadas em água-tinta, água forte e ponta seca com brunidor, sobre chapas de cobre medindo 30,5 x 43,5 cm, este acervo ficou inédito até 1864, ano em que, depois de passar por dois donos, foi vendido para a Academia de Belas Artes de San Fernando, que publicou as 18 gravuras reunidas sob o título de “Provérbios”, em 360 exemplares. Esta é a coleção que havia sido vendida pelos herdeiros do artista, em 1854 ,a Roman Garreta. O último dono antes da Academia Real foi Jaime Machén. Goya havia decidido não publicá-las por causa da perseguição aos iluministas promovida pelo absolutismo fernandino, que se intensificou de 1814 a 1820. Na coleção aqui exposta, às dezoito gravuras da série, foi acrescida mais uma, identificada como Disparate da besta, a n° 19, das quatro estampas restantes que compunham a série, e que estavam com o pintor madrileno Eugênio Lucas, grande admirador do artista. Estas gravuras apareceram na França e foram publicadas, em 1877, pela Revista Del´Art.
São conhecidos vinte desenhos preparatórios dos “Disparates”, em que o traço vivo do artista revela figuras de uma sátira mordaz, absolutamente sintética, que desafiam o espectador entre o riso e a perplexidade. Desenhos de linha pura, sem sfumato, anotações gráficas que, no entanto, eram considerados pelo artista como obras autônomas, tanto é que ele os organizou em álbuns, o que não era comum na época. Houve, também, alguns desenhos a pincel em sanguínea. Ao gravar, na técnica do brunidor e da ponta seca, sobre a água-forte e a água-tinta, as figuras ganharam em dramaticidade e começaram a ser envolvidas em grandes massas tonais sem detalhes de fundo, e sem contornos nítidos, como se fossem figuras cambiantes, contrariando os critérios vigentes do neoclassicismo. As cenas teatrais do estilo oficial se desmancham em movimentos e convulsões. Ele já transitava pela noite dos símbolos desde a série Os Caprichos (1746- 1828) e ao gravar Os desastres da Guerra (1810 - 1814).Os “Disparates” são uma crônica visual onde a emoção se esparrama no traço pulsante e voluptuoso como uma hemorragia. Isto é, sem dúvida, um avanço do meio expressivo que projeta Goya para o expressionismo, quase um século depois.
O renascimento artístico e as Luzes. Goya havia ingressado no regime noturno da imagem, o da introspecção, da comoção, do eufemismo, da sedução dos contrários. É o que indica a obra Disparate Fúnebre, n°18, que parece ser a primeira da série, pelas evocações simbólicas que ela revela. Do corpo que jaz sobre o solo, renasce um homem em cujos traços se reconhece o artista. Dom Francisco, ou simplesmente Paco? Renasce para revolucionar a arte? Para criticar a sociedade, o absolutismo e até os “esclarecidos”? Quem o recepciona nesta nova vida? Uma figura ímpar, híbrida entre mulher e coruja, o saúda com as asas abertas. Um sorriso complacente, uma expressão enigmática, como se o esperasse há muito tempo, seria a alma do artista?Algumas figuras surgem da sombra, recém-saídas do seu nicho escuro, titubeantes, como se ele as estivesse acordando neste momento, chamando-as para a cena. Nem o iluminismo o encanta mais. O povo está na concepção da obra, não mais como tema de divertimento com seus jogos e folguedos, com seus trapos coloridos como bandeiras de uma pobreza consentida, folclórica, que agradava aos aristocratas. Agora, são vistos como gente, entre o sonho e as contingências, expressão de um tempo de absurdos e disparates, de desilusão, de mentiras, de breves momentos de reconhecimento à amizade e à lealdade, que aparecem na série como pequenas luzes até rasgar a limpidez do céu, com o Disparate Claro, o n°15, que, a meu ver, fecha a série. Aí, o povo junto levanta o céu pesado de nuvens de chumbo e promove a luz. Como se levantasse a lona do grande circo do cotidiano, dos papéis convencionais, porque o que se vive, mesmo, intensamente, fica nos intervalos do espetáculo. É preciso sair das sombras. Mesmo que sejam as sombras das Luzes.
Curadora
Mariza Bertoli
Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte
ABCA e Associação Internacional de Críticos de arte - AICA